sábado, 5 de janeiro de 2013

O indizível do mundo do trabalho



Pasma de espanto leio que 49% dos brasileiros não concluíram o ensino fundamental, segundo o IBGE, dados de 2010. E reflito sobre qual Brasil falamos? Isso significa dizer que cerca de 100 milhões de cidadãos brasileiros não atingiram o nível mínimo de escolaridade e que o pouco acesso foi feito numa escola desestruturada, com professores mal remunerados e deficiências de toda sorte. Tempo de agudas contradições. Há universidades privadas com salas lotadas, com 90, 100 alunos, a grande maioria contemplada com bolsas do governo federal. Isso é bom? Seria, se parte dos estudantes não usasse o conforto da bolsa para comprar carros financiados e se acabarem bebendo cerveja na esquina da instituição, sem esboçar interesse algum pelo aprendizado. Evidente, há exceções, mas a grande maioria sequer sabe o que está fazendo no banco da universidade.
Na contramão, o governo altera a legislação para que mais estrangeiros venham trabalhar no país. Sim, com 100 milhões de almas sem escolaridade básica e a ausência de uma política de orientação é “importar” mão de obra de alta qualificação. Precisamos de engenheiros químicos, físicos, do ramo de petróleo e gás, da biogenética, da nanotecnologia e de áreas diversas da pesquisa, porque nossa vocação tem sido formar levas de administradores, publicitários, gerentes e analistas. Somos o país da oralidade, do verbo, do discurso. O laboratório, o pensar em profundidade nos causa fadiga. Por isso a fartura de “designers”, ou ‘micreiros’, milhares de publicitários ou marqueteiros, gerentes de tudo que se possa imaginar, mas falta cérebro e as corporações já pressionam o governo a atrair gente que use a cabeça para além da cópia do corte de cabelo dos jogadores de futebol. 
Então, nessa ‘desconstrução’ percebemos o desaparecimento de certos ofícios. Por exemplo, não temos mais açougueiros. Por quê? “Ninguém quer pegar dois ônibus para chegar ao trabalho”, dizem os veteranos.. “O trabalho dignifica o homem?”, se ventilada nos dias atuais, a expressão tão usada na década de 1980 na indústria paulista soa como engrenagem literária mal-acabada ou simplesmente, intraduzível. São tantas as transformações acerca do valor simbólico do trabalho que não se pode encerrar o assunto dizendo apenas de sua desconstrução. Quem sabe abordar a existência de uma “outra” engenharia, gestada nas entranhas do mundo globalizado, orientado pelo conceito de rede, como bem traduziu o cientista social Manuel Castells.
Se o trabalho como conteúdo social foi sinônimo da capacidade do homem para transformar o meio e a natureza para viver melhor, hoje, o ato do trabalho pode significar – simplificada e irredutivelmente – ter acesso à universalização de um modelo de vida que reúne internet, celular, carro, conforto e é claro “status”. E é esta invenção velha e invisível, o status, que desarticula alguns ofícios. Ser açougueiro e padeiro, não projeta, não mostra vínculo com tecnologia, tampouco com plasticidade. Há gente querendo emprego sim mas, Epa!, não para fazer qualquer coisa! A continuar neste ritmo, teremos de aprender a talhar a carne ou, pagar mais para que tudo venha embalado e não exista alguém atrás do freezer a perguntar à freguesa: – O que vai hoje dona?
Nesse voo contraditório temos a tecnologia exibindo nas poltronas dos aviões circuitos internos de TV, com conteúdo segmentado, dando asas ao novo mercado do bem-estar e da oportunidade, como alguns consultores proliferam por aí. Seria este nosso momento contemporâneo o contato real com a modernidade líquida, tão bem definida por Zygmunt Bauman? Faz todo sentido, ao lembrar o episódio que presenciei há poucos dias, durante um voo nacional: dois comissários conversando em alto e bom tom sobre os bastidores da companhia aérea. Amenidades como: “quem pega mulher na empresa” e por que a colega X, que era “tão sarada” perdeu as curvas depois de casar com o “playboy da Barra da Tijuca”.
Foi-se o tempo em que a aeromoça acalmava o passageiro “com medo de avião”. Hoje, o cliente paga caro para voar nas linhas nacionais, come amendoim com nome de refeição e perde o medo de avião em velocidade de cruzeiro ao ser atendido pelas equipes de jovenzinhos bem barbeados e bem maquiadas, mas educados e treinados em altitude de pés... pés de couve. Educar é o desafio que nos impõe o mutante mundo do trabalho.

Marta Fontenele é professora e escritora. 
Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição de 04 de Janeiro e 2013, pág. 2 Editoria Opinião.

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