Pasma
de espanto leio que 49% dos brasileiros não concluíram o ensino fundamental,
segundo o IBGE, dados de 2010. E reflito sobre qual Brasil falamos? Isso significa
dizer que cerca de 100 milhões de cidadãos brasileiros não atingiram o nível
mínimo de escolaridade e que o pouco acesso foi feito numa escola
desestruturada, com professores mal remunerados e deficiências de toda sorte. Tempo
de agudas contradições. Há universidades privadas com salas lotadas, com 90,
100 alunos, a grande maioria contemplada com bolsas do governo federal. Isso é
bom? Seria, se parte dos estudantes não usasse o conforto da bolsa para comprar
carros financiados e se acabarem bebendo cerveja na esquina da instituição, sem
esboçar interesse algum pelo aprendizado. Evidente, há exceções, mas a grande
maioria sequer sabe o que está fazendo no banco da universidade.
Na
contramão, o governo altera a legislação para que mais estrangeiros venham
trabalhar no país. Sim, com 100 milhões de almas sem escolaridade básica e a
ausência de uma política de orientação é “importar” mão de obra de alta
qualificação. Precisamos de engenheiros químicos, físicos, do ramo de petróleo
e gás, da biogenética, da nanotecnologia e de áreas diversas da pesquisa,
porque nossa vocação tem sido formar levas de administradores, publicitários, gerentes
e analistas. Somos o país da oralidade, do verbo, do discurso. O laboratório, o
pensar em profundidade nos causa fadiga. Por isso a fartura de “designers”, ou
‘micreiros’, milhares de publicitários ou marqueteiros, gerentes de tudo que se
possa imaginar, mas falta cérebro e as corporações já pressionam o governo a
atrair gente que use a cabeça para além da cópia do corte de cabelo dos
jogadores de futebol.
Então,
nessa ‘desconstrução’ percebemos o desaparecimento de certos ofícios. Por
exemplo, não temos mais açougueiros. Por quê? “Ninguém quer pegar dois ônibus
para chegar ao trabalho”, dizem os veteranos.. “O trabalho dignifica o homem?”,
se ventilada nos dias atuais, a expressão tão usada na década de 1980 na
indústria paulista soa como engrenagem literária mal-acabada ou simplesmente,
intraduzível. São tantas as transformações acerca do valor simbólico do
trabalho que não se pode encerrar o assunto dizendo apenas de sua desconstrução. Quem sabe abordar a
existência de uma “outra” engenharia, gestada nas entranhas do mundo
globalizado, orientado pelo conceito de rede, como bem traduziu o cientista
social Manuel Castells.
Se
o trabalho como conteúdo social foi sinônimo da capacidade do homem para
transformar o meio e a natureza para viver melhor, hoje, o ato do trabalho pode
significar – simplificada e irredutivelmente – ter acesso à universalização de
um modelo de vida que reúne internet, celular, carro, conforto e é claro
“status”. E é esta invenção velha e invisível, o status, que desarticula alguns
ofícios. Ser açougueiro e padeiro, não projeta, não mostra vínculo com tecnologia,
tampouco com plasticidade. Há gente querendo emprego sim mas, Epa!, não para
fazer qualquer coisa! A continuar neste ritmo, teremos de aprender a talhar a
carne ou, pagar mais para que tudo venha embalado e não exista alguém atrás do
freezer a perguntar à freguesa: – O que vai hoje dona?
Nesse
voo contraditório temos a tecnologia exibindo nas poltronas dos aviões
circuitos internos de TV, com conteúdo segmentado, dando asas ao novo mercado do bem-estar e da oportunidade,
como alguns consultores proliferam por aí. Seria este nosso momento contemporâneo
o contato real com a modernidade líquida,
tão bem definida por Zygmunt
Bauman? Faz todo sentido, ao lembrar o episódio que presenciei há poucos dias, durante
um voo nacional: dois comissários conversando em alto e bom tom sobre os
bastidores da companhia aérea. Amenidades como: “quem pega mulher na empresa” e
por que a colega X, que era “tão sarada” perdeu as curvas depois de casar com o
“playboy da Barra da Tijuca”.
Foi-se
o tempo em que a aeromoça acalmava o passageiro “com medo de avião”. Hoje, o cliente
paga caro para voar nas linhas nacionais, come amendoim com nome de refeição e
perde o medo de avião em velocidade de cruzeiro ao ser atendido pelas equipes
de jovenzinhos bem barbeados e bem maquiadas, mas educados e treinados em
altitude de pés... pés de couve. Educar é o desafio que nos impõe o mutante
mundo do trabalho.
Marta Fontenele
é professora e escritora.
Artigo publicado no Jornal Correio Popular, edição de 04 de Janeiro e 2013, pág. 2 Editoria Opinião.
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